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A inusitada relação entre o aparelho de rádio e o trabalho remoto
Coisas de Sociologia
A inusitada relação entre o aparelho de rádio e o trabalho remoto
Clara Silberschneider
Clara Silberschneider
July 16, 2021
4 min

Uma das discussões mais acaloradas do momento está sendo sobre a volta ao trabalho presencial de várias empresas. Após ler uma reportagem da BBC BRASIL, fiquei pensando o tanto que essa discussão tem a ver com uma temática que tratei no meu mestrado, sobre o surgimento de um novo indivíduo e como, de fato, a virtualização da vida já vinha acontecendo – e como a pandemia apenas acelerou esse processo. Claro que muito disso não é novidade, afinal, o que mais vimos no início dessa quarentena intermitente foi exatamente uma análise das diversas consequências trazidas pela vida em isolamento.

O que proponho aqui é incrementar esse modo de pensar o mundo ocidental pós pandêmico. O que proponho agora é uma discussão sobre a relação entre quem as pessoas se tornaram nesse último ano e o que isso traz como consequência para a maneira como elas percebem o mundo a seu redor e suas dinâmicas.

No meu mestrado em sociologia, realizei um breve histórico sobre aparelhos de reprodução musical até o desenvolvimento de fones de ouvido e uma Era Digital. Analisei como o ser social/sociável está mudando mudou. Isto é, enquanto muitas pessoas ainda taxam certos comportamentos como “anti-sociais” (no caso dos fones, a considerada distração auditiva, ou o uso constante de redes sociais, etc), fato é: tais elementos passaram a incorporar o mundo offline, de modo que a maneira como as pessoas se identificam umas com as outras, com suas rotinas, e até com o seu próprio eu etc, passaram a ser ditadas pelo modo que elas interagem com seus dispositivos eletrônicos, suas redes sociais, seus contatos online . Esse tema complexo sobre o “conjunto ciborgue” que estamos nos tornando ainda será tratado em outros textos, mas por enquanto, me atenho a falar dessas relações de mudança, e aproximá-las ao foco do texto – repensar esse indivíduo pós pandêmico e sua relação com trabalho.

O rádio está para a música dos fones de ouvido assim como o trabalho remoto está para…

Quais foram as consequências do aparelho rádio para a maneira como as pessoas se relacionavam com a música? Muitas! Dentre as infinitas consequências cabe destacar aqui principalmente a entrada da música no ambiente privado. Antes do rádio, você tinha que pagar pela transmissão de música (adquirindo discos de goma laca por exemplo), além de sua restrição aos imaginários de espaços tipicamente públicos, como bailes, festas ou apresentações específicas. Agora (nos anos 1920, 1930) vários estabelecimentos tinham um aparelho de rádio, e ele se tornou o principal meio de comunicação para a transmissão de notícias, músicas, novelas, abarcando desde a indústria do entretenimento até o jornalismo. Dentro de casa, passou a ser um aparelho em volta do qual a família se reunia para compartilhar daquilo que estivesse escutando.

Música e programas de rádio passaram a incorporar a paisagem sonora doméstica de um modo como não havia ocorrido até então com os sons na história. O aparelho de rádio foi capaz de aproximar os/as ouvintes a estilos musicais e a informações que antes eram muito distantes da realidade próxima aos mesmos/as. Ou seja, criou-se um vínculo íntimo das pessoas com seus artistas e suas músicas que, com sua miniaturização, puderam de ser levados para fora de casa. E é aí que quero chegar com a discussão e fazer a aproximação da questão pandêmica do trabalho remoto.

As incertezas de um futuro de relações trabalhistas que nunca será a mesma por conta de um trabalho remoto.

Quais foram/estão sendo as consequências do trabalho remoto? Ainda não conseguimos contabilizar ao certo todas as consequências desse processo, visto que nós estamos passando por essa virada remota. O que proponho aqui é: assim como a música invadiu o espaço privado de forma intensa ao entrar em casa, também estamos adentrando a uma nova era onde o trabalho se consolida fortemente no espaço doméstico. E muitas pessoas estão validando o espaço de trabalho como pertencente do espaço doméstico. Quero dizer, por que não? Rotinas foram alteradas e se incorporou um novo modelo de trabalhador/a, que consegue entregar suas tarefas virtualmente e que entende o trabalho de forma diferente do tempo presencial.

Do mesmo modo que o aparelho de rádio contribuiu para o que poderíamos chamar de treinamento social dos hábitos de escuta e a concretização de uma experimentação do mundo através da esfera sensorial/sonora como espaço legítimo de expressão de gostos e preferências, o trabalho remoto traz consideráveis mudanças no modo de experimentarmos o mundo do trabalho. Quem sabe não seria o trabalho remoto parte de treinamento social dos hábitos de trabalho que se alteram cada vez mais? Afinal, tanto a pessoa empregada, quanto a empresa tiveram que se adaptar a um novo ato de trabalhar – seja exercendo, seja cobrando o seu exercício.

Mas qual é a solução? Entender que trabalhar mudou é uma possibilidade de resposta.

É um processo de mão dupla. Vamos lembrar que quando a pessoa ouvinte sai às ruas agora com sua relação íntima com a música (possibilitada fortemente pela música do rádio), isso é suplementado pelo surgimento de vários outros dispositivos técnicos para sanar a necessidade desse novo modelo de escuta. Com o trabalho remoto, porém, ainda não sabemos qual será o lado que irá surgir quando/se os trabalhos, hoje remotos, retornarem presencialmente. Talvez o modelo híbrido seja o nosso chute mais próximo(?)

E no fim dessa história temos que as distâncias cada entre mundo da vida e mundo do trabalho estão cada vez mínimas. Essa colonização do mundo da vida pelo sistema, ou mundo do trabalho, não é novidade na filosofia ou na sociologia, mas enfim, quis contribuir para esse pequeno diagnóstico sobre uma questão contemporânea, na qual é possível visualizar algumas migalhas desse processo.

Alguns pontos foram relevados, mas que merecem consideração: (a) situação de dificuldade de se estabelecer remotamente frente à falta de estrutura residencial que muitas pessoas ainda encontram; (b) infelizmente o trabalho remoto não é possível para todas as áreas – e curiosamente áreas que não são remotas são cada vez mais descredibilizadas; (c) a junção do mundo da vida com o mundo do trabalho não é necessariamente algo bom ou algo ruim, pode ser reflexo de uma vida cada vez mais moldada aos moldes do capital – mas isso daí eu deixo pra um outro mestrado.


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